13.12.07

 

Pequena Polémica sobre Jorge de Sena



Pelo interesse do assunto, quebro a prometida continuidade do tema do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, para dar conta de uma recente e amável troca de opiniões, com um confrade destas lides internéticas, sobre a personalidade do escritor Jorge de Sena, por ele apelidado de compulsivo maledicente.

Esta forte adjectivação que verdadeiramente me feriu em corda sensível, foi depois por ele justificada, com excertos dos Diários do escritor, vindos a público há coisa de poucos anos, por iniciativa da viúva Mécia de Sena e de que, na oportunidade, não me havia apercebido.

Como se pode imaginar, não conhecendo eu essas passagens dos escritos de JS, em que a fibra mais íntima e mais azeda de JS amplamente se manifestava, não podia deixar de me chocar com tão abrupta classificação.

Apesar de ter lido bastante de Jorge de Sena : poesia, contos, romance, estudos e ensaios sobre autores e temas da literatura em geral, quase tudo nos anos subsequentes à sua morte, em 1978, em nenhum lado me confrontara com essa sua extremada faceta.

Era, então, naquele, para mim e para muitos nossos compatriotas, risonho tempo de iniciação política e cultural, um dos meus autores preferidos, modelo eleito de intelectual socialmente interventivo, no inebriante turbilhão político que se viveu em Portugal, a seguir à Revolução.

Em muita coisa que dele li me apercebi do seu carácter exaltado, excessivo, torrencial, mas sempre o senti verdadeiro, na sua multímoda forma de se exprimir.

Admirava a sua altivez perante as instâncias que criticava e apreciava a sua independência de espírito, entre as capelinhas costumeiras que se formavam e continuam a formar em Portugal, a propósito de tudo e de nada.

Tinha frequentes acessos de fúria, na escrita e em discursos públicos que ainda lhe vi fazer, entre eles o daquele célebre, pela inusitada veemência, discurso da Guarda, numa comemoração do dia 10 de Junho, salvo erro de 1977.

Via-se que era um espírito revoltado contra muita coisa e contra muita gente, cioso do seu valor, que ele considerava não fora devidamente reconhecido, nem recompensado no Portugal pós-revolucionário, como achava deveria ter sido, tal como se passara com muitas outras figuras de intelectuais, expatriados políticos, alguns, na verdade, generosamente tratados pelos novos poderes, muito para lá até dos seus reais méritos ou currículos políticos.

Cabe aqui relembrar uma confissão sua numa das entrevistas, então disputadas pelos meios de comunicação social, segundo a qual teria ficado bastante magoado por não o terem convidado para nenhuma Cátedra na Universidade Portuguesa, após o 25 de Abril, como fizeram a muitos outros seus pares.

Perante a sua estupefacção, pelo esquecimento a que o estariam a votar, facto que terá sido transmitido a alguém com influência no poder revolucionário, teria recebido, como satisfação, a sugestão de se inscrever numa estrutura partidária, de preferência de orientação socialista, sendo fácil de adivinhar qual terá ela sido.

Ainda hoje, passados mais de trinta anos, continua essa mesma formação partidária a dominar largamente as estruturas do Estado, da Universidade e instituições afins, da Comunicação Social, etc., numa consagração incontestada de verdadeiro partido certo, o mais politicamente correcto de todos, mesmo se mudou de filosofia e de prática governativa, conservando embora a designação de socialista, presume-se que apenas por tradição, inércia ou por mera conveniência táctica, na sua luta pelo Poder efectivo.

Jorge Sena, que detinha, na altura, excelente posição numa universidade americana de prestígio, possuía também, comprovadamente, largo currículo como Poeta, Ensaísta e Professor, pelo que não abraçou a vergonhosa sugestão.

De resto, nunca ela quadraria com o seu perfil de intelectual, altivamente independente de organizações partidárias, que não de preferências políticas, que eram consabidamente das Esquerdas, embora com respeito da Democracia Parlamentar, como publica e repetidamente afirmou.

Deve, pois, Jorge de Sena ter sofrido muita pulhice, antes e depois do 25 de Abril, o que terá certamente contribuído para extremar um temperamento já de seu natural um tanto áspero, que muitos retiveram, sobretudo, relativizando os seus imensos méritos intelectuais. Para mim, sobre todos esses atributos, acrescia ainda o do eminente camonista que ele era, condição que mais me reforçaria na duradoura afeição com que lhe fiquei.

De tal forma que, mesmo essas passagens agora reveladas, de pura maledicência, sem dúvida pouco abonatórias da sua personalidade, como naturalmente reconheço, não chegam, para fazer diminuir a minha velha estima por ele; quando muito, servirão para atenuar ou relativizar o pedestal em que o colocara, circunstância que, ao longo da nossa vida, infelizmente, acaba por acontecer com muitos dos nossos ídolos de juventude, em geral, na justa proporção do conhecimento que vamos tendo da sua vida mais íntima.

De onde se segue que, muitas vezes, é bem preferível ignorarmos a vida privada dos nossos heróis, da qual a virtude e o aprumo ético com frequência se ausentam, ao contrário do que sucede com o valor das suas obras, se o têm, que nunca nos decepcionam, valendo por si mesmas, pela arte que nelas lograram realizar.

Acrescentarei ainda que, bem ponderados, esses infaustos pormenores da vida particular de Jorge de Sena, agora conhecidos, não passarão, todavia, de meros pecadilhos comparados com o descalabro ético que vemos socialmente triunfante nos nossos dias.

E, a compensá-los, ainda ficaram de Jorge de Sena as suas múltiplas e variadas obras, cujo valor pode e deve ser aferido com rigor pelas gerações que depois dele vierem.

De muitos outros, incluindo os mais virtuosos, o que ficará ?

AV_Lisboa, 13 de Dezembro de 2007

Comments:
Bom dia.
Não haverá mal se eu me acusar, dizendo que foi no meu blog A Revolta das Palavras que exprimi posição sobre o Jorge de Sena. Fi-lo com mágoa, a mesma que sinto quando vejo figuras que estão no panteão da glória portuguesa, mitificadas, mostrarem os seus pés de barro.
O problema não é termos de distinguir sempre, por uma questão de higiene mental, o autor da obra; o problema são todos aqueles que, em vez de nos mostrarem as figuras que, grande ou menores, fazem parte da História da nossa Cultura, se entretêm a diabolizar umas, colocando-lhes ao peito a estrela aamarafela da infâmia,levando outras à santidade e ao campo dos mártires da Pátria.
Um dia, a verdade vem ao de cima. E custa, eu sei. Custou-me ter constatado o que escrevi.
Tudo isto daria largo pano para muitas mangas.
A lista dos avençados culturais do regime político anterior e dos por ele apaparicados, que riscaram da sua biografia esses momentos de compromisso, não é mais do que a manifestação de um espírito videirinho que, infelizmente, é mais generalizado do que devia, mesmo descontando que, em busca de um mecenato para apoio à sua obra, cada artista tem, por vezes, que vender a alma ao Diabo.
Aceite um abraço e parabéns pelo seu blog, que fiquei agora a conhecer melhor.
jab
 
Jorge de Sena tem o mérito do que de melhor se pensou em português...mesmo quando o pensou noutra língua.



post assertivo.



___________________boa n oite.
 
o tardio é recíproco...:)


valeu.me o meu amigo Jab.



boa noite.


e obrigada.
 
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